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sábado, 19 de novembro de 2022

Canto da despedida: cisnes, cigarras e corujas

 Reza a lenda que alguns animais emitem um canto antes de morrer, entre os mais populares estão o  da cigarra. Para o homem é reservado um manifesto ou algum legado. É claro que aqui não se trata, por enquanto e ainda bem, da morte, mas de uma despedida dos meus quase cinquenta anos do exercício da biblioteconomia. Porém não abdico de pensar a profissão e o mundo, até meu último traço de saúde mental. Minha  longa estrada me permitiu acumular experiências gratas, outras nem tanto, porém se as primeiras me motivaram, as segundas formaram, vamos dizer, certa bagagem crítica, pela qual acredito ter,  minimamente, uma autoridade para  propor  visões sobre práticas da/na profissão, em alguns temas, que considero em aberto ou politicamente delicados. Em primeiro lugar, gostaria  de falar dos momentos gratos,  eles felizmente são muitos, e estão em um registro de experiências que estou reunindo e não cabem nesse artigo, mas para resumir, apenas se conjugam numa expectativa de que esses anos todos, creio, desculpem o clichê, eu  ter plantado minhas sementes. Ainda tenho contato com alguns meninos, hoje homens e mulheres de comunidade que lograram êxito em suas trajetórias, e quero acreditar que tive talvez alguma influência nisso, porque, assim como no caso de professores, os bibliotecários dificilmente terão a dimensão exata do tamanho do seu bem-fazer, como o médico diante da cura rápida de um paciente. Hoje temos que  considerar o fato de que novas gerações vêm se formando, em um ambiente de transformações, cujo diferencial é a velocidade com que se processam informações. Tais mudanças, até o inicio do século passado,  só eram possíveis de  se imaginar em obras de ficção e ensaios futuristas. Destaco   duas notáveis, a  imaginada por George Orwell e largamente conhecidas no seu 1984 (1929e no ensaio de Ivan Illich, Sociedade sem escolas (1971.).O primeiro retrata o controle dos atos humanos pela Inteligência Artificial, que nos tem  maravilhado e, ao mesmo tempo, atemorizado. O segundo descreve, com olhar singular, a multiplicidade de instituições  e de redes comunitárias a protagonizarem a Educação, transferindo a centralidade das escolas para ambientes variados. Não se pode dizer que não seja  horizonte factível de se vislumbrar. Hoje nos vemos, a toda hora, atropelados pela factibilidade das coisas. Eis que as circunstâncias  para o que  antes habitava o campo do imaginário  se concretizam, quem diria, por uma pandemia, a Covid-19. Vacinas em tempo recorde, por exemplo, no primeiro caso. O ensino e o trabalho em home-office no segundo. Voltando a nossa profissão, é preciso reforçar, regozijo-me (não gosto do termo, mas vá lá) com o fato dos avanços tecnológicos  tenham propiciado facilidades e possibilidades midiáticas para o trabalho cotidiano, e que  a velocidade para nós, bibliotecários, está se tornando um bem de primeira necessidade. Porque agilidade, nos dias de hoje, se tornou um imperativo. Um catalogador, por exemplo, já há algum tempo, pode baixar títulos de outras bibliotecas  para seu catálogo, mas o que está colocado é darmos conta, em tempo hábil, de um acervo, sempre em desenvolvimento, e disponibilizá-lo, de imediato,  é caso para um  "Orwell de bibliotecas".  Ou se adota um sistema de biblioteca central com uma equipe boa de catalogadores - que necessita logística e pessoal numeroso- e funcionaria como um centro técnico a serviço de outras unidades, e liberam-se bibliotecários para referência e atenção ao público,  ou continuaremos sendo  tartaruguinhas da informação, porque ela é um trem-bala sem freios.  Mesmo assim, é preciso um olhar atento para cada obra, mesmo que os dados descritivos venham de outras fontes. Por outra, imagina que horror o bibliotecário  usar as expressões "aguarda, por favor, já vamos atendê-lo", "no momento os operadores estão todos ocupados", "pode ligar mais tarde?", como um call-center..  Uma outra questão e, particularmente, afeto a prática das bibliotecas escolares, as  visitas programadas dos alunos que tem dois aspectos. Ou vão para uma atividade por demanda e coletiva,  ou para outra, eletiva,  as turmas para "pegar livros", aí vejo um embaraço, porque, em geral os intervalos são curtos entre as aulas, o que pode  ter um impacto negativo sobre a qualidade desse uso.  Pouco tempo para escolha individual, quando a escolha  é um bem essencial para a autonomia do leitor. Ao contrário do processamento para o bibliotecário, que precisa ser veloz, o tempo para abrir, folhear, escolher algo, aí é essencial ao leitor. Senão será uma "escolha" aleatória, não a desejada. Alguém pode se imaginar numa livraria ou biblioteca, tendo cinco minutinhos para escolher um livro? Numa biblioteca pública, o uso é feito, individualmente, ou em por grupos pequenos  por vez em um setor,  com frequência maior, logo o tempo  de escolha é  mais elástico.  Durante todo o tempo em que trabalhei, atendendo escolas, isso se sucedeu com mais frequência do que a desejável. Outra situação que destaco é a pesquisa, Ressalto que, o que chamo de pesquisa não é, nem de longe, o que vi praticado nas bibliotecas,  atendendo a escolas -  foi uma consulta a uma verbete ou um tema, em que os alunos copiam e colam, apesar dos meus protestos.  A pesquisa que mereça esse nome é um ato de recorte, filtro, ou seleção de um aspecto ou ou tópico, um exercício bem pouco praticado. Não um ctlrl-c, ctrl-v, , e esse copia-e-cola,  inúmeras vezes vi também feito feito manualmente, e digo, sem receio, que tem efeito zero, em termos de agregar conhecimento, porque simplesmente é automático. E no automático não se pensa. Muitas vezes quis falar disso com os professores, mas nunca havia tempo e oportunidade. Agora, enquanto espero por um  Orwell, ou uma boa distribuição de horários dos alunos na biblioteca escolar, vamos celebrar outro advento: a sagração das atividades coletivas  de leitura. E essa tem sido a tônica da chamada formação de leitores, e fartamente descrita nas políticas oficiais. Sim, as crianças gostam dessas sessões. Como gostam de vídeos, de gibis, de brincar, do lúdico. Vamos que seja no bom sentido e  com boas intenções que aconteçam, mas as vejo mais como um exercício de aproximação, o que é importante, e  seu marco é a  contação de histórias. Porém tomá-la como  "tratamento" para "desalienação" ou -"formar o cidadão crítico" , a meu ver é um exagero, se pensado como formação de leitor, o qual considero, tomando emprestado o conceito da medicina, uma espécie de  placebo. Não posso me render a uma crença em postulações bastante discutíveis, nos documentos do antigo Proler com premissas como "a literatura é para o espírito humano aquilo que é o farol na noite escura"(...) É como a chuva que cai ligeira para fecundar a terra  (...) a literatura e apenas ela é a defesa do único,  frente ao uniforme; e do singular frente ao plural (...); a literatura, e apenas ela,  pode criar anti-corpus para deter a deterioração dos significados impostos pela sociedade do consumo", que "faz do leitor autor de sua existência"(sic). À parte os apelos poéticos, quero dizer que não se discutem as  excelências da literatura, muito menos de seu potencial como discurso político - eu mesmo tomei Orwell como exemplo e estão aí os poemas de Maiakovski e as peças de Brecht para provar. Fui e sou (hoje menos, confesso)  apreciadora de literatura inclusive,  porém não vejo esse "farol",  nem esse "anti-corpus" ou "protagonismo da existência" nessa apologia. A literatura é polissêmica e pode "formar" tanto leitores críticos quanto alienadíssimos. Outros autores lhe dão funções enciclopédicas.  Hoje o conhecimento enciclopédico está num apontador,  o Google. A questão dessas premissas e suas críticas  devem estar abertas e, não, uma unanimidade, como vejo se formar.  Harold Bloom  declara em bom som: "desconfio de qualquer argumento que associe a leitura solitária ao bem público". A literatura tem a ver com dois outros tipos de experiência importantes.  O primeiro (e pra mim insubstituível), a do encontro do indivíduo com  outros indivíduos;  a de conhecer novos personagens e novas experiências pela identificação ou catarse, e também nos conhecermos  a nós mesmos. O segundo, de natureza estética e sensível da construção do discurso, se dá pelo encantamento, a  poeysis de Aristóteles. Não quero desqualificar nenhum projeto, mas advertir sobre o fato, de sob a denominação de "formação de leitores", via leitura literária, fazerem dele uma cruzada redentora. E particularmente vejo profissionais da informação  que hoje vem considerando tarefas conexas a informação como se fossem algo menor. É para o que nossa profissão existeCada vez mais necessária. E que  precisa de apoio  da Educação para as estratégicas a serem pensadas diante da desinformação. Claro, não podemos abdicar  do bonus nas  atividades de leitura coletiva ao tornar a imagem de uma biblioteca um ambiente de cultura, agradável, atrativo. Hoje me preocupa um espectro que  ronda a todos, a desinformação, e se tem uma vacina para desinformação, não vamos pedir antídotos à literatura, pelo amor de Deus, mas aos muitos ramos do conhecimento atingidos, como a saúde, o meio ambiente, o gênero, a História, que estão aí  sendo despedaçados, quando temos à disposição recursos para explorá-los, e cada vez melhor, informação, .microscópios , laboratórios e  livros, muitos livros! Isso se faz convidando leituras  informativas  para entrar na roda literária para se diversificarem os diferentes discursos. Que tal a biografia de Pasteur, Sabin ou Oswaldo Cruz, que muitos sequer ouviram falar neles, senão fosse a Covid? Que tal maratonas científicas coletivas? E ações de leitura, mesmo que literárias,  poderiam ser mais pró-ativas ou menos passivas: onde as crianças leitoras, elas mesmas, contariam histórias, à sua escolha?

  É isso, para o momento. Queria perguntar. Qual dos bichos cantadores vocês escolhem?  O cisne, a cigarra ou a coruja ? 

quinta-feira, 29 de abril de 2021

Fim das bibliotecas. Fim?

 


               
“O que sempre me fascinou nessas grandes bibliotecas públicas é o halo de luz    verde desenhando um círculo claro, em cujo centro se encontra o livro. Você está com seu livro e cercado de todos os livros do mundo” (Carriére, 2009, p.246)

As especulações sobre o fim do livro e das bibliotecas físicas ensejaram   muitos debates, entre as quais destaco as publicadas no simpático  Não contem com o fim do livro, Humberto Eco e Jean-Claude Carriére[i]., de onde surgiu a frase que inspirou a epígrafe . Mesmo descontando o fato de que falam de bibliofilia, entendo que o “fim do livro” implicaria no fim das bibliotecas físicas.  Prendo-me aqui, e avanço mais no meu “quadrado’, a essas bibliotecas,  públicas e escolares. Ninguém, em sã consciência ou conhecimento de causa, proclama o fim dessa fonte inesgotável de conhecimentos, mas forçosa e abundantemente debatem-se os efeitos da avalancha eletrônica sobre ela, nas duas últimas décadas. Visível que as bibliotecas não só se utilizam como adotaram estratégias de convivência tecnológica, com salas disponibilizando computadores aos usuários,  algumas com acervos digitalizados, e outras, a de ampliar seu perfil para o conceito que chamam de “parque”, que são verdadeiros centros culturais, cujo foco não é apenas o suporte livro, mas uma diversidade de bens culturais e mídias. Com o uso cada vez  mais alargado das  mídias virtuais, as pessoas tenderão, naturalmente, a fazer uso das possiblidades  online  no seu cotidiano e, cada vez menos, a se deslocarem.  Nesse “caldo” informático vieram para ficar, o home-office, já disseminado  e as bibliotecas virtuais, nem tanto. Em resumo, caso as condições permitirem, você pode optar por  ir pessoalmente às bibliotecas  ou acessá-las, de onde estiver. Pode? Bem, pousando os pés no chão, vemos que, a despeito das grandes bibliotecas  nacionais, universitárias e conglomerados digitais no mundo  (Amazon, Google) e plataformas privadas oferecerem  tais facilidades, a realidade virtual esbarra na realidade social; não está ao alcance  daquele público que não conta em casa com equipamento e rede condignas para acesso à internet e que demanda políticas públicas de inclusão digital. Independentemente, das vantagens de alcance social,  voltemos à cena em que o leitor  vai à sua biblioteca municipal ou se, docente ou aluno, à sua aconchegante biblioteca escolar.  Permitam-me  usar de uma licença . Imagine que você esteja em um lugar mágico, em que as coisas, no caso  os livros, como no País das Maravilhas, se multipliquem  e se agigantem e, de repente, e você se veja com eles a seu redor. E organizados, sistematicamente, por todos os campos do conhecimento, e se subdividindo, de modo infinitesimal, sem que você dimensione, mas sem que você se perca neles. Claro, é uma licença, na verdade é do  ambiente que estou falando.  A biblioteca, como uma enciclopédia, é um índice gigante do conhecimento humano, virtual ou físico. Mas, ao percorrer seus corredores, você está percorrendo todos os saberes e, em um só território e a um só tempo, abertos à  universalidade, expondo-se a descobertas.  Importa  menos o tamanho da biblioteca. Pequena, média, grande, é um fato. Uma biblioteca geral pode não ter um acervo completo, mas por menor que seja,  todo conhecimento se encerra nela, por princípio. E é uma experiência que não se deve furtar principalmente às crianças, curiosas e prontas a explorar tudo.  Nenhum banco de dados ou acervo digitalizado vai lhe abrir essa “enciclopédia”.  Por que? No ambiente virtual o seu acesso é pontual, o que pode, sim, abrir uma janela para muitos títulos, mas jamais vai lhe dar essa cosmovisão. Porque é da natureza do mundo virtual ser fragmentário. E essa é a chave diferencial para permanência das bibliotecas físicas.  E o que importa o todo? - perguntarão. Aí o leitor é quem decide se quer ver o mundo por uma ou por muitas janelas.

  Sheila G Soares, 2021



[i] Carriére,Jean-Claude; Eco, Humberto. Não contem com o fim do livro. Rio de Janeiro: Record,2009.

domingo, 9 de agosto de 2020

Meu guru


Quase todos temos nossos gurus da leitura. O meu principal  foi meu pai. Com os demais só ratifiquei a minha paixão, fundada por uma pessoa que nos fazia tropeçar em livros em casa.

Papai tinha mania de coleções. Capas-duras. Coleções de obras-primas, de obras de um autor, como Eça de Queirós, Machado de Assis,  J. Cronin,  os Nobel e os clássicos, fora os livros de Medicina, que utilizava para sua consulta.

Meu pai , por isso, nunca comprava o livro unitário. Inclusive para os filhos, coleção de Monteiro Lobato, Tesouro da Juventude, Clássicos Jackson. E não raro me lembro de vê-lo lendo um desses volumes.Fazia-o discretamente recolhido em seu escritório. 

Nas rodas, à mesa de jantar, porém, comentava trechos e recitava  poemas que ouvíamos, admirados, desde pequenos. Aprendi a amar Augusto dos Anjos, por sua irreverência e pela impostação de meu pai.

Minha mãe preferia jornais e revistas. Gostava de política nacional e lia a Útima Hora, a Manchete. Papai, o Globo, na época o jornal mais conservador do país. Os jornais sempre formaram monturos em minha casa, muitos recortes no meio dos livros, porque não tínhamos esse meio de armazenamento ( fantástico) de hoje que é o computador. 

Até hoje ainda faço monturinhos na minha casa e separo os suplementos culturais para " ler depois". E tenho ainda a mania de papai de jogar os jornais já lidos, ao pé da cadeira ou sofá. 

De marcar ou sublinhar passagens dos livros

O computador tornou-se a base da consulta para tudo, mas,com exceção de matéria técnica,  dificilmente passa a oportunidade quanto ao aprofundamento que uma obra impressa permite. Não é uma certeza, é uma sensação.

A ideia de intimidade, onde nada se se compara ao livro aberto no colo, desde sempre, fez parte da minha rotina.

Tudo isso devo ao meu guru, meu guia intelectual, meu pai.

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segunda-feira, 15 de julho de 2019

O RATINHO, O MORANGO VERMELHO MADURO E O GRANDE URSO ESFOMEADO: EM QUE A DRAMATURGIA PODE CONTRIBUIR PARA A INTERPRETAÇÃO TEXTUAL


                                                                                                               Sheila G Soares
1.       Introdução

Frequentei nos anos 90, dois cursos de roteiros (TV e cinema), um Seminário de Dramaturgia de teatro, e um laboratório de cinema no Sundance, Nogueira- RJ, em 2001, e, após entrar (por concurso) para o quadro de funcionários da Fundação Municipal de Educação de Niterói, em 2009, observei, ao longo do tempo, como seria útil, para as práticas de leitura textual, a introdução de princípios da dramaturgia como via de interpretação de  literatura infantojuvenil de ficção. O que será abordado aqui talvez não seja novidade para os docentes;  mas pelo que observei, desde escola particular (ONG Solar Meninos de Luz 2001-2008), bibliotecas populares da FME (3,de 2009 a 2016) e escola do Ensino Fundamental da Rede ( 2017-), não observei o uso desses recursos. De antemão, alerto que são  de  simples aplicação,  e que não é nenhum demérito que sejam consideradas “ovo de Colombo” .  Importante é que se coloque o ovo em pé.

2.       Os Limites da interpretação

Observei que a cultura chamada de “interpretação” de texto literário na escola cristaliza alguns hábitos, no momento de se avaliar a apreensão de um texto por parte das crianças.  E geralmente por “interpretação” entende-se como a reprodução de uma sequência  narrativa. As crianças têm uma  facilidade natural em reproduzir enredos e são bastante fiéis a eles. Mas não significa que tenham  “interpretado”.  Alguns  textos têm muito  material a explorar que não é  apenas factual ou apenas "enredo".  Justamente o que se chama de “interpretação”- o que vai além  da simples reprodução de uma história - requer muito mais do que memorização, que é uma apreensão essencial, mas primária.  Requer um aprofundamento em alguma questão ou problemática não explícita, que geralmente tem duas orientações: juízo de valor e produção de sentido.  O juízo de valor (quase sempre aspectos morais) encontra-se muito nas fábulas e em abundância nas histórias clássicas infantis. A desobediência é um valor implícito, embora claro, em Pinóquio e Chapeuzinho Vermelho.  A imprevidência em n´Os Três Porquinhos, a inveja em Cinderela, e assim por diante. Algumas histórias têm mais do que um juízo de valor. Já a produção de sentido se dá em obras abertas, independentemente  da extensão  da obra ou do público-alvo. Obra aberta é “a obra de arte como algo inacabado que exigiria do receptor, no ato da fruição, uma participação bastante ativa, a fim de perceber a obra como um objeto aberto a várias possibilidades interpretativas” (Eco, 1995) A produção de sentido, portanto, implica em o leitor exercer a subjetividade soberanamente, não induzida, ou seja, ele faz uso daquela narrativa de acordo com sua visão de mundo, de sua experiência de vida, de sua cultura pessoal, ou de seu inconsciente, por meio de uma elaboração individual. É a leitura do mundo de que fala Paulo Freire. Esse é um domínio difícil de interferir, porque é bastante complexo exercê-lo como prática pedagógica, ao mesmo tempo é também difícil não se ceder à tentação de induzir.  Que não seja interditado “trabalhar produção de sentido”, propor questões; mas que haja  alguns cuidados em respeito à subjetividade. Uma experiência me é cara em uma roda de leitura com crianças, quando trabalhei em uma escola de  comunidade. O livro em questão foi o famoso e singelo  Maria vai com as outras, de Sylvia Orthoff, onde a autora  coloca o impasse para uma ovelhinha decidir entre seguir o líder do rebanho e saltar de uma ribanceira, o que as demais ovelhas fizeram, ou “ouvir” seu instinto de sobrevivência, e não saltar.  Ao final da narrativa, um aluno, que devia ter seus seis anos, disse com ar reflexivo:  -  “o meu pai cheira todas e bebe todas..”  ante nossa perplexidade. Esse foi um nítido exemplo de como o texto repercutiu na sua produção de sentido. O dilema  gerou instantaneamente  nele a ideia de que o pai  não conseguira se livrar de más influências e o que resultou disso: caiu, como as ovelhas, ribanceira abaixo. É produtivo trabalhar por analogia com uma experiência real na vida de cada um, mas sem perder o foco de que esse é um terreno movediço, onde se ocultam ressentimentos e outros afetos próprios do leitor. A produção do sentido está na zona cinzenta (ou cor-de-rosa) dos afetos. O que pode ser um “limite da interpretação” para o mediador, como diria Humberto Eco. Mas como tratar a interpretação na prática pedagógica, já que se nossa meta é capacitarmos leitores para além da apreensão  literal do texto ?

3.       Linguagem dramatúrgica e linguagem literária: as narrativas clássicas e abertas

Vimos que temos o juízo de valor e a produção de sentido em literatura como métodos a serem explorados na interpretação, cada um no seu território. Os princípios de  dramaturgia nos oferecem uma segunda  via de interpretação, já que não é ela mesma literatura, contudo não exclui esses dois  métodos.  Uma história como Romeu e Julieta é uma trama intrincada de fatos e afetos, mas será que Shakespeare, ao escrevê-la, não quer marcar moralmente a irracionalidade do ódio (juízo de valor) representada nas famílias Capuletto e Montecchio, como um modelo a não ser seguido pela Humanidade? Como é sabido, ele o fez, apenas através de sua famosa narrativa dramática. As inferências nós as fazemos, tipo “o ódio nada constrói”.  A dramaturgia se move pela ação. Na literatura a ação não é condição necessária, embora muito presente nos livros para jovens e crianças. Há um enorme acervo de obras literárias adaptadas para cinema, teatro e televisão, porque elas têm potencial para se transformarem em roteiros e viabilizarem uma produção.  Em resumo, a literatura tem certo grau de dramaturgia, mas é raro e inadequado a  dramaturgia reproduzir o texto literário, no palco ou nas telas. O  literário conta; o dramatúrgico  mostra. Meu grande professor José Louzeiro insistia nessa regra.  Por outro lado, a ação em dramaturgia abrange também afetos, manifestações, não só de natureza física.  Esperando Godot , de Beckett,  um clássico de teatro universal para adultos, é um exemplo típico de obra aberta, com diálogos e movimentação escassos.  Em uma obra aberta, como Esperando..., ou nos movemos por uma suposta “intenção” do autor, ou por um olhar subjetivo, aquele que tenha repercutido interiormente em nós, espectadores ou leitores. O juízo de valor são preceitos estabelecidos socialmente. São valores e normas  estabelecidas pelas leis,  pela sociedade ou pela comunidade a que pertencemos.  A Arte, porém, seja em qualquer meio de expressão, não tem compromisso com nenhum  juízo de valor ou norma estabelecida, apesar de estar comumente associada aos textos literários para o público infantojuvenil,  Porque sempre pretendem ser “educativos” e, como tal, a discussão moral  entre Bem e o Mal é  presença constante.

2.  Elementos dramatúrgicos de texto-modelo :  O Ratinho, o Morango vermelho maduro e o Grande Urso esfomeado.

A aplicação de elementos dramatúrgicos  ficam bastante claros, quando escolhemos um modelo ou exemplo. Um pequeno texto pode ser muito rico em materiais interpretativos não literais, a partir daquela premissa de não identificarmos o conteúdo de imediato. O pequeno grande livro de Don e Audrey Wood, título referido acima, é o nosso modelo-exemplo. Com o mínimo de texto, é uma trama curta e expressiva. Sinopse: um ratinho, ao encontrar um suculento morango maduro deseja-o para si, mas ao pressentir a ameaça do grande urso, vindo em seu encalço para comer a fruta, procura várias soluções rápidas para tentar escondê-la. Essa é uma sinopse de apenas três ou quatro linhas. E qual a questão envolvida? Reparem que toda a trama é apenas o esforço do pequeno em esconder a fruta, esforço em vão, porque o morango é grande e pesado para transportar, o urso é veloz e o tempo é curto. Qual o elemento dramatúrgico nessa história? O impasse. Um impasse se apresenta logo ao protagonista.  Em algumas narrativas clássicas, introduzem-se a personagem, o ambiente e época, como se vê nas histórias iniciadas por “era uma vez”, para contextualizar espaço e tempo. Mas toda e qualquer trama se desenvolve a partir de um problema e não da contextualização. Sem problemas, por menores que sejam,  não há dramaturgia. A premissa da interpretação é de imediato a identificação do problema. Precisa acontecer algo que mova as personagens a uma ação a tirá-los da normalidade, à qual retornarão (ou não) ao final.  A partir de um impasse,  a trama segue rumo a um enfrentamento e a uma resolução.  Atentem que, quase sempre, o final é feliz. Termina num casamento, uma celebração, uma recompensa etc.  Mas, examinando melhor o final do Ratinho ..., a trama não evolui como na maioria das narrativas clássicas para crianças. Voltando à linha do enredo, o ratinho procura algumas soluções para enfrentar o problema (esconder/disfarçar o morango) ; afinal,  nenhuma é satisfatória, já que a aparição do grande urso é iminente. Então ele resolve deixar a metade da fruta para o poderoso animal.  E contenta-se em ficar com a outra metade que pode carregar. Acabou o enredo. Não foi final “feliz”, porque não conseguiu a fruta só para ele; nem infeliz, porque escapou ileso.  Mas é isso?  Não. Sigamos.

2.1   Agora façamos um exercício de argumento , não é produção de sentido.

Personagens.  Um ratinho e um urso oculto.
Identifique o problema que o ratinho enfrenta. Um enorme urso quer  pegar o belo morango que o ratinho desejou. O impasse: ou deixa a fruta para o urso ou  arrisca sua vida.
Como ele enfrenta o problema, já que o urso é muita vezes mais forte do  que ele?  De duas maneiras.
 1º tentando esconder  o morango.
2º tentando disfarçá-lo.
Também duas estratégias inúteis. O urso cheira um morango a muitos km de distância.
Como ele resolve o problema? Divide então o morango em duas partes.
Uma parte ele já come. A outra deixa para o urso E assim salva sua pele.
Esse é apenas o argumento que você “compreendeu” e  está bem explícito.

2.2   Pensemos numa produção de sentido. Você pode tirar uma conclusão para você de uma história como essa? 

Agora imagine uma situação parecida que você tenha vivido no seu cotidiano. Isso se chama produção de sentido, que pode variar de pessoa para pessoa.
 Há livros, como falamos, que não têm nenhuma “moral” (ou juízo de valor) explícita. Esse não tem. Aqui se sugere apenas  que o ratinho foi mais astuto do que corajoso. Pense em quantas situações parecidas acontecem conosco. Don Woody nos mostra  o quanto somos limitados em nossos poderes.(essa produção de sentido é minha). Que há sempre alguém mais forte do que nós, e que o mais inteligente será negociar, perdendo alguma coisa, do que desafiar e perdermos tudo. Que há circunstâncias que nos levam a abrir mão de alguma coisa, a ceder. Quantas situações aparecem em que temos que ceder?  Em quantas situações temos que simplesmente aceitar certas condições, e esperar para superá-las em outra oportunidade?  Em quantas somos levamos a dividir algo material ou moral ? Em que momento você se viu obrigado(a) a repartir algo que deseja muito, para preservar você mesmo,  alguém ou alguma coisa, ou parte de algo que deseja?  Quando temos que avaliar as nossas reais possibilidades? Então podemos dizer que o ratinho foi medroso... ou cauteloso? Enfim, múltiplas possibilidades a explorar. Muitas narrativas enaltecem o herói.  São chamadas histórias românticas ou heroicas, em que o protagonista, com persistência ou bravura, vence um inimigo ou um antagonista muito mais forte do que ele.  Está cheio deles na literatura. Mas em geral não funciona assim na realidade. Vimos que história do ratinho há mais elementos realistas do que românticos. Ele reconhece suas desvantagens em relação ao antagonista, então prefere a estratégia à bravura. O pequeno e rico texto valeu-se de um recurso dramatúrgico que mais mostra do que descreve. Importante observar que a produção de sentido não é aquela solução apresentada pela  personagem.  É o que esta solução agregou para o leitor em termos de sua experiência. Mais importa que suscitem perguntas do que respostas.

3.       Conclusão

Como foi mencionado, para textos da literatura infantojuvenil do primeiro ciclo   (1º ao 5º ano) é bastante simples a interpretação utilizando elementos dramatúrgicos. No tripé problema ou um impasse, o enfrentamento do problema e a resolução do problema são elementos que necessariamente precisam ser identificados na trama.  Procuramos ver se existem indícios de juízo de valor, que não são complexos de explorar, e podemos parar por aí. Porém os textos podem ir além da produção do juízo de valor  - a produção de sentido –  a pergunta é o quê,  para cada um dos leitores, aquele texto associou à sua experiência?
Recomendável que seja aplicado à leitura em roda de um texto por vez, com possibilidade de gerar ricas discussões.
Mas atenção: há textos com vastíssimas possibilidades. São mais complexos e requerem recursos da dramaturgia também mais complexos. Aplicam-se aos jovens mais velhos e com mais escolaridade.

4.       Bibliografia recomendada

     Beckett, Samuel. Esperando Godot. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.

Ortoff.  Maria vai com as outras.  São Paulo: Ática, 1987.

     Pallotini, Renata. Introdução à dramaturgia. Rio de Janeiro: Brasiliense, 1983

    Propp, Vladimir. Morfologia do conto maravilhoso. São Paulo: Forense, 1984

   Vogler, Christopher. A jornada do escritor. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008

   Wood, Don e Audrey. O ratinho, o morango vermelho maduro e o grande urso esfomeado. São Paulo: Brinque book,  2008

segunda-feira, 6 de março de 2017

Compreender biblioteca e bibliotecários

                             
O que me move aqui é traduzir sucintamente esses conceitos – biblioteca e bibliotecários - tão mal compreendidos, sem introduções, históricos e teorias. Para leigos. Do modo mais simples que meus 40 anos de profissão puderem expressar. Embora recente como conhecimento profissionalmente  estabelecido, a biblioteconomia é uma das  atividades que têm mais tradição no mundo, quanto à sua idade  na História, e  dada à sua natureza,  sua origem, como salvaguarda do conhecimento. E que se transforma, claro, como tudo, e ainda bem, porque vem agregando mídias  e diferentes funções. Mas, vamos reconhecer, seu suporte e sua razão de existir é o livro. Viajei  recentemente à Inglaterra e à Suécia e visitei bibliotecas públicas municipais. Sim, é o livro, na sua dimensão social, o protagonista da biblioteca. Onde quer que ela esteja está o livro. E claro,  pessoas interagindo com ele. As bibliotecas são espaços e equipamentos culturais abertos à sociedade em busca do conhecimento. Algumas delas podem contar com ou estar em espaços culturais, mas não são centros culturais. Podem contar com atividades educativas, lato sensu, mas não são escolas.  Nelas, o que se vê são pessoas “apenas” lendo qualquer coisa, outras estudando, outras mais consultando seus computadores para diferentes fins, não necessariamente saberes, apenas informações importantes para o dia a dia, ou simples curiosidades. E sua peculiaridade, ao contrário de que muitos creem,  é de que a biblioteca  não é também equipamento de massa, como um espetáculo -  uma peça ou filme - para onde as pessoas  vão com o propósito de usufruir do mesmo objeto. Atinge cada sujeito na sua particularidade. Na extensão de sua necessidade e seu desejo, em um mesmo ambiente ou pelos meios de difusão.  Não é algo novo o que estou dizendo, mas por incrível que pareça, algo aparentemente tão simples, como um ambiente coletivo de leitura seja, ao mesmo tempo, tão estranho ao senso comum. Uma pergunta que já ouvi muitas vezes: precisa “ter faculdade pra fazer isso [arrumar livros na estante]”?
O que há nesses espaços são profissionais que atendem ao público, de forma personalizada, no que ele precisa em termos de informação e saberes, aos quais  chamamos bibliotecários “de referência”, que irão orientar o usuário sobre como/onde encontrar  a informação ou um determinado documento, mesmo fora de seu território. Para tal atividade é preciso mais que familiaridade, como
 vemos nas livrarias. O bibliotecário precisa “entender do assunto”? Não. Cumpre a ele localizá-lo em seus diferentes aspectos ou suportes (além dos livros) Por exemplo. Um médico pode procurar o assunto “aborto” sob  aspectos biológicos; um advogado sob o aspecto legal; um religioso sob o aspecto moral. Que pode estar num artigo, livro ou outro meio. Um conteúdo pode estar sob  diferentes contextos, suportes e aspectos os quais o bibliotecário deve conhecer, sob o ponto de vista da organização da informação temática e dos meios. Definido o objeto da demanda, para que o bibliotecário seja ágil em sua resposta, ele deve contar com um sistema de informação (SI) bem estruturado. Na falta dele, valerá sua experiência em classificação, o que não é suficiente. O profissional pode falhar, o sistema de informação não. E como é o sistema de informação, pode ser um catálogo? Sim, pode ser na sua forma, porém não é um simples cadastro, uma “relação de livros” ou “lista de documentos” como muitos leigos veem.  É um meio bastante complexo, pelo qual se oferecem descritores (não conteúdos) adequados a uma pesquisa ou uma simples consulta. Os bibliotecários fornecem os meios, não as respostas. Para isso, no SI existem pontos de acesso. Pontos de acesso recuperam, para o consulente, elementos tais como autores ou responsabilidades, títulos, séries, assuntos e os quesitos que satisfaçam àquela demanda e numa linguagem adequadamente representada. Esse é um dos mais importantes campos da biblioteconomia. Aqui entra a tão propalada função educativa do bibliotecário, em que ele orienta o usuário no acesso à informação e no uso do documento.  As bibliotecas, porém, para trabalharem  com sua capacidade máxima, necessitam de ferramentas que vão além de seus acervos locais, como diretórios, bibliografias, que disponibilizem recursos a nível nacional e internacional.
Antigamente (há uns trinta, quarenta anos) um sistema de informação era produzido manualmente, em fichas ou listagens impressas, trabalhosas de se atualizarem. Mas isso mudou, ainda bem, e evoluiu para softwares e bancos de dados online próprios para uso de bibliotecas, e que permitem formatos, tanto para se migrarem dados de uma biblioteca para, outra, como para intercâmbio de fontes. Esses softwares são desenvolvidos por profissionais de TI, porém a montagem deles necessita de suporte de bibliotecários, sob  pena de ficarem incompletos. Contando com um software para bibliotecas, é necessário um bibliotecário técnico para alimentação dos dados que vão compor o sistema de informação. Por que? Por que essa alimentação exige que se sigam normas internacionalmente aceitas, que são exclusivas de sua competência. Você não pode manipular uma fórmula, se você ñ é um farmacêutico, certo? É a mesma coisa. Alguns SI podem ter módulos que auxiliem no funcionamento da biblioteca como cadastro de usuários, relatórios estatísticos e controle de movimentação do acervo, que podem ser mantidos pela equipe auxiliar, mas é fundamental que, principalmente, o sistema de recuperação da informação, de responsabilidade do bibliotecário, possa repercutir também para o público externo no país e até fora dele. São conhecidas as redes de bibliotecas nacionais, estaduais e municipais que trocam informações sobre seus acervos e colaboram entre si. Sem dúvida, essa é uma das maiores conquistas da humanidade na área de informação.
O que mais faz o bibliotecário? Desenvolvimento de coleção. Ou seja, aquisição, seleção, descarte de acervo que seja adequado ao perfil do público local. E quanto mais geral o acervo, mais refinada é a seleção. Avaliar bem o perfil do público é também uma tarefa básica, que envolve conhecer e se relacionar bem com a comunidade a quem a biblioteca vai servir.
Administração. Implica planejar e  trabalhar com as equipes de colaboradores e auxiliares, e os recursos materiais, dentro de um programa de funcionamento e de atividades planejadas que deem visibilidade à biblioteca e atraiam público permanente. Em geral essas atividades contam com um grupo profissional multidisciplinar, ou da própria instituição a que é subordinada, ou contratado especialmente para eventos  e convidados voluntários. Tais atividades são estratégicas para uma boa (e necessária) receptividade da biblioteca em seu meio.
 É esperado também que os bibliotecários sejam sensíveis, particularmente os que atuam no Terceiro Mundo, às dificuldades e desafios da inclusão sociocultural, ainda presentes nos países em desenvolvimento.  E isso implica em sistemáticas ações de incentivo ao uso das bibliotecas por parte de um público iletrado ou não familiarizado com práticas leitoras.
De qualquer modo, a  finalidade de uma biblioteca é universal:  a de  que seja um espaço de  familiaridade e, no plano ideal, de fidelidade à leitura e ao saber, e onde a comunidade se veja incluída e, ao mesmo tempo,  o veja como parte do seu cotidiano.
Espero ter ajudado na compreensão de biblioteca e dos bibliotecários.
                                                                                                              Sheila G Soares 2017





terça-feira, 25 de outubro de 2016

Nobel a Bob Dylan: esnobismo nórdico ou injustiça artística Leonardo Padura

                                                                                
                 Estou mergulhado há dois anos na redação de um novo romance. Mesmo quando um escritor já pratica seu ofício há muito tempo, escrever um novo romance é sempre um exercício árduo e extenuante –e acredito que seja assim para quase todos os escritores que respeitam a si e a seus leitores.
Eu precisei de quatro anos para concluir "Hereges" e cinco para pôr o ponto final em "O Homem que Amava os Cachorros". Por que é tão difícil escrever um romance? Por que o escritor, ainda mais o escritor profissional, sente que nunca disse o que pretendia dizer da melhor maneira em que é capaz de dizê-lo, e retorna várias vezes sobre o que escreveu, transpira, duvida, receia?
Hemingway confessou certa vez que tinha escrito o final de "Adeus às Armas" quase 40 vezes. Quando lhe perguntaram qual tinha sido o problema, ele deu uma resposta tão simples quanto terrível e reveladora: o problema era a ordem das palavras. Porque, na realidade, tudo se resume a isto: a colocar uma palavra atrás de outra para conseguir expressar algo que tenha um sentido e consegui-lo do modo mais belo e claro possível. O difícil é consegui-lo.
Milan Kundera, por sua vez, falou de uma característica peculiar da arte do romance: é que o autor que começa a escrever esse livro é diferente do que terminou de escrevê-lo. Por duas razões: o processo de escrever um romance, de tirar tantas coisas de dentro de si para falar dos mistérios da condição humana, muda você, quer você queira, quer não. E a outra razão é ainda mais dramática: para escrever um romance você pode precisar de dois, três, cinco anos, às vezes mais. O tempo transcorrido faz com que você não seja mais o mesmo entre um momento e outro. É a lei da vida.
Gabriel García Márquez contou várias vezes o que precisou fazer para escrever "Cem Anos de Solidão". O romancista renunciou a todos seus trabalhos de sobrevivência, encerrou-se com seus cafés e seus cigarros para escrever e confiou que poderia acontecer alguma coisa com seu livro, pois, do contrário, sua família estaria do outro lado da beira da falência. E assim escreveu durante anos.
Parece evidente que o ofício literário requer essa dose de masoquismo, de autoimolação, um processo com dor ao longo do qual o artista tem que combater todos os demônios que sejamos capazes de imaginar. Eu me refiro aos verdadeiros escritores, àqueles que fazem de sua arte um instrumento para penetrar "a alma das coisas", como pedia Flaubert. Mas esse verdadeiro escritor assume os riscos e se empenha em sua tarefa. Por quê? Porque não pode deixar de fazê-lo.
Estou convencido de que nunca serei um escritor com as qualidades de Hemingway, Kundera, García Márquez ou Flaubert. Mas, se aprendi alguma coisa em meus quase 40 anos lutando com a escrita, é que escrever literatura é um ofício tremendamente difícil, às vezes lacerante, repleto de incertezas e geralmente, depois de tanto esforço, premiado com a indiferença. Porque apenas um bom livro entre muitos bons livros consegue chegar a se converter em referência, em sucesso comercial (que está mais ao alcance de alguns maus livros).
Os poetas, esses seres empenhados em nos fazer descobrir que a vida pode ser expressa com outras palavras, dedicam-se à sua obra sabendo, de modo geral, que não receberão recompensas por seu trabalho. A poesia nunca vendeu bem e, embora em determinadas épocas e conjunturas históricas os poetas tenham gozado de grande prestígio social e cultural, seu empenho raramente alcança ressonância maior. Mas os poetas existem, sonham, burilam os idiomas, iluminam a mente. Porque são poetas e não podem evitá-lo.
E os dramaturgos? Como no caso da poesia, a experiência pessoal não me acompanha em minha opinião, mas o fato de mover personagens diante dos olhos de outros e contar por meio das palavras deles algo tão difícil de armar como um verdadeiro drama implica, sem dúvida, um esforço criativo maiúsculo.
Direi apenas que vi com surpresa como se concedeu a recompensa literária que se supõe ser a mais importante do mundo a um escritor de letras de canções. Um dos maiores e mais influentes. Um poeta da canção. Claro, o grande Bob Dylan, o
 Prêmio Nobel de Literatura. Esnobismo nórdico ou injustiça artística? Não sei, mas acho que não teria ocorrido a ninguém entregar um Prêmio Grammy a um poeta, um romancista ou um dramaturgo, graças à musicalidade de seus textos. Alejo Carpentier e Carlos Fuentes morreram sem o Nobel de Literatura. Milan Kundera e Philip Roth esperam pelos deles... Mais do que nunca, a resposta da Academia Sueca está boiando no ar.

                                                  L.P.      Folha de São Paulo, 22/10/2016