Reza a lenda que alguns animais emitem um canto antes de morrer, entre os mais populares estão o da cigarra. Para o homem é reservado um manifesto ou algum legado. É claro que aqui não se trata, por enquanto e ainda bem, da morte, mas de uma despedida dos meus quase cinquenta anos do exercício da biblioteconomia. Porém não abdico de pensar a profissão e o mundo, até meu último traço de saúde mental. Minha longa estrada me permitiu acumular experiências gratas, outras nem tanto, porém se as primeiras me motivaram, as segundas formaram, vamos dizer, certa bagagem crítica, pela qual acredito ter, minimamente, uma autoridade para propor visões sobre práticas da/na profissão, em alguns temas, que considero em aberto ou politicamente delicados. Em primeiro lugar, gostaria de falar dos momentos gratos, eles felizmente são muitos, e estão em um registro de experiências que estou reunindo e não cabem nesse artigo, mas para resumir, apenas se conjugam numa expectativa de que esses anos todos, creio, desculpem o clichê, eu ter plantado minhas sementes. Ainda tenho contato com alguns meninos, hoje homens e mulheres de comunidade que lograram êxito em suas trajetórias, e quero acreditar que tive talvez alguma influência nisso, porque, assim como no caso de professores, os bibliotecários dificilmente terão a dimensão exata do tamanho do seu bem-fazer, como o médico diante da cura rápida de um paciente. Hoje temos que considerar o fato de que novas gerações vêm se formando, em um ambiente de transformações, cujo diferencial é a velocidade com que se processam informações. Tais mudanças, até o inicio do século passado, só eram possíveis de se imaginar em obras de ficção e ensaios futuristas. Destaco duas notáveis, a imaginada por George Orwell e largamente conhecidas no seu 1984 (1929) e no ensaio de Ivan Illich, Sociedade sem escolas (1971.).O primeiro retrata o controle dos atos humanos pela Inteligência Artificial, que nos tem maravilhado e, ao mesmo tempo, atemorizado. O segundo descreve, com olhar singular, a multiplicidade de instituições e de redes comunitárias a protagonizarem a Educação, transferindo a centralidade das escolas para ambientes variados. Não se pode dizer que não seja horizonte factível de se vislumbrar. Hoje nos vemos, a toda hora, atropelados pela factibilidade das coisas. Eis que as circunstâncias para o que antes habitava o campo do imaginário se concretizam, quem diria, por uma pandemia, a Covid-19. Vacinas em tempo recorde, por exemplo, no primeiro caso. O ensino e o trabalho em home-office no segundo. Voltando a nossa profissão, é preciso reforçar, regozijo-me (não gosto do termo, mas vá lá) com o fato dos avanços tecnológicos tenham propiciado facilidades e possibilidades midiáticas para o trabalho cotidiano, e que a velocidade para nós, bibliotecários, está se tornando um bem de primeira necessidade. Porque agilidade, nos dias de hoje, se tornou um imperativo. Um catalogador, por exemplo, já há algum tempo, pode baixar títulos de outras bibliotecas para seu catálogo, mas o que está colocado é darmos conta, em tempo hábil, de um acervo, sempre em desenvolvimento, e disponibilizá-lo, de imediato, é caso para um "Orwell de bibliotecas". Ou se adota um sistema de biblioteca central com uma equipe boa de catalogadores - que necessita logística e pessoal numeroso- e funcionaria como um centro técnico a serviço de outras unidades, e liberam-se bibliotecários para referência e atenção ao público, ou continuaremos sendo tartaruguinhas da informação, porque ela é um trem-bala sem freios. Mesmo assim, é preciso um olhar atento para cada obra, mesmo que os dados descritivos venham de outras fontes. Por outra, imagina que horror o bibliotecário usar as expressões "aguarda, por favor, já vamos atendê-lo", "no momento os operadores estão todos ocupados", "pode ligar mais tarde?", como um call-center.. Uma outra questão e, particularmente, afeto a prática das bibliotecas escolares, as visitas programadas dos alunos que tem dois aspectos. Ou vão para uma atividade por demanda e coletiva, ou para outra, eletiva, as turmas para "pegar livros", aí vejo um embaraço, porque, em geral os intervalos são curtos entre as aulas, o que pode ter um impacto negativo sobre a qualidade desse uso. Pouco tempo para escolha individual, quando a escolha é um bem essencial para a autonomia do leitor. Ao contrário do processamento para o bibliotecário, que precisa ser veloz, o tempo para abrir, folhear, escolher algo, aí é essencial ao leitor. Senão será uma "escolha" aleatória, não a desejada. Alguém pode se imaginar numa livraria ou biblioteca, tendo cinco minutinhos para escolher um livro? Numa biblioteca pública, o uso é feito, individualmente, ou em por grupos pequenos por vez em um setor, com frequência maior, logo o tempo de escolha é mais elástico. Durante todo o tempo em que trabalhei, atendendo escolas, isso se sucedeu com mais frequência do que a desejável. Outra situação que destaco é a pesquisa, Ressalto que, o que chamo de pesquisa não é, nem de longe, o que vi praticado nas bibliotecas, atendendo a escolas - foi uma consulta a uma verbete ou um tema, em que os alunos copiam e colam, apesar dos meus protestos. A pesquisa que mereça esse nome é um ato de recorte, filtro, ou seleção de um aspecto ou ou tópico, um exercício bem pouco praticado. Não um ctlrl-c, ctrl-v, , e esse copia-e-cola, inúmeras vezes vi também feito feito manualmente, e digo, sem receio, que tem efeito zero, em termos de agregar conhecimento, porque simplesmente é automático. E no automático não se pensa. Muitas vezes quis falar disso com os professores, mas nunca havia tempo e oportunidade. Agora, enquanto espero por um Orwell, ou uma boa distribuição de horários dos alunos na biblioteca escolar, vamos celebrar outro advento: a sagração das atividades coletivas de leitura. E essa tem sido a tônica da chamada formação de leitores, e fartamente descrita nas políticas oficiais. Sim, as crianças gostam dessas sessões. Como gostam de vídeos, de gibis, de brincar, do lúdico. Vamos que seja no bom sentido e com boas intenções que aconteçam, mas as vejo mais como um exercício de aproximação, o que é importante, e seu marco é a contação de histórias. Porém tomá-la como "tratamento" para "desalienação" ou -"formar o cidadão crítico" , a meu ver é um exagero, se pensado como formação de leitor, o qual considero, tomando emprestado o conceito da medicina, uma espécie de placebo. Não posso me render a uma crença em postulações bastante discutíveis, nos documentos do antigo Proler com premissas como "a literatura é para o espírito humano aquilo que é o farol na noite escura"(...) É como a chuva que cai ligeira para fecundar a terra (...) a literatura e apenas ela é a defesa do único, frente ao uniforme; e do singular frente ao plural (...); a literatura, e apenas ela, pode criar anti-corpus para deter a deterioração dos significados impostos pela sociedade do consumo", que "faz do leitor autor de sua existência"(sic). À parte os apelos poéticos, quero dizer que não se discutem as excelências da literatura, muito menos de seu potencial como discurso político - eu mesmo tomei Orwell como exemplo e estão aí os poemas de Maiakovski e as peças de Brecht para provar. Fui e sou (hoje menos, confesso) apreciadora de literatura inclusive, porém não vejo esse "farol", nem esse "anti-corpus" ou "protagonismo da existência" nessa apologia. A literatura é polissêmica e pode "formar" tanto leitores críticos quanto alienadíssimos. Outros autores lhe dão funções enciclopédicas. Hoje o conhecimento enciclopédico está num apontador, o Google. A questão dessas premissas e suas críticas devem estar abertas e, não, uma unanimidade, como vejo se formar. Harold Bloom declara em bom som: "desconfio de qualquer argumento que associe a leitura solitária ao bem público". A literatura tem a ver com dois outros tipos de experiência importantes. O primeiro (e pra mim insubstituível), a do encontro do indivíduo com outros indivíduos; a de conhecer novos personagens e novas experiências pela identificação ou catarse, e também nos conhecermos a nós mesmos. O segundo, de natureza estética e sensível da construção do discurso, se dá pelo encantamento, a poeysis de Aristóteles. Não quero desqualificar nenhum projeto, mas advertir sobre o fato, de sob a denominação de "formação de leitores", via leitura literária, fazerem dele uma cruzada redentora. E particularmente vejo profissionais da informação que hoje vem considerando tarefas conexas a informação como se fossem algo menor. É para o que nossa profissão existe. Cada vez mais necessária. E que precisa de apoio da Educação para as estratégicas a serem pensadas diante da desinformação. Claro, não podemos abdicar do bonus nas atividades de leitura coletiva ao tornar a imagem de uma biblioteca um ambiente de cultura, agradável, atrativo. Hoje me preocupa um espectro que ronda a todos, a desinformação, e se tem uma vacina para desinformação, não vamos pedir antídotos à literatura, pelo amor de Deus, mas aos muitos ramos do conhecimento atingidos, como a saúde, o meio ambiente, o gênero, a História, que estão aí sendo despedaçados, quando temos à disposição recursos para explorá-los, e cada vez melhor, informação, .microscópios , laboratórios e livros, muitos livros! Isso se faz convidando leituras informativas para entrar na roda literária para se diversificarem os diferentes discursos. Que tal a biografia de Pasteur, Sabin ou Oswaldo Cruz, que muitos sequer ouviram falar neles, senão fosse a Covid? Que tal maratonas científicas coletivas? E ações de leitura, mesmo que literárias, poderiam ser mais pró-ativas ou menos passivas: onde as crianças leitoras, elas mesmas, contariam histórias, à sua escolha?
É isso, para o momento. Queria perguntar. Qual dos bichos cantadores vocês escolhem? O cisne, a cigarra ou a coruja ?